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O carinho

Música usada: Seduced by suicide -My sweetest choice (https://m.youtube.com/watch?v=OX26thW1YBA&pp=ygUTU2VkdWNlZCBieSBzdWljaWRlIA%3D%3D)

Felipe

 

Corro como se a minha vida estivesse dependendo da velocidade alta. Mesmo o cansaço consumindo aos poucos o meu ar, eu não queria parar de correr. Tudo isso não apenas para fugir de mim mesmo, como também tentar escapar da realidade que se formou diante de mim, mesmo sabendo que, no fundo, era algo totalmente impossível.

Inevitavelmente, o cansaço me consumiu. Quando eu dei por mim, eu estava na Praça da Liberdade, cercado por aqueles que se auto-intitulavam como “alternativos”. Havia muitos roqueiros e góticos naquele lugar. Afinal de contas, era noite de sexta-feira e era até compreensível todos estarem lá pra pelo menos tentarem tirar o stress acumulado nos dias úteis. Enquanto a mim, era mais do que stress que eu estava sentindo. Era algo mais profundo e doloroso que estava habitando de dentro de mim e que se recusava a sair. Fui obrigado a me isolar no canto mais obscuro do jardim para que ninguém visse a minha desgraça. Encostei-me na árvore mais próxima e deixei com que inúmeros pensamentos e temores rondassem a minha cabeça.

Várias recordações surgiram na minha mente. Lembranças boas no tempo em que eu me considerava a criança mais feliz nesse mundo. Eu ainda tinha dez anos quando meus pais e eu vivíamos felizes em uma casa grande, que sempre fez parte de nossa família desde os tempos da ditadura militar. Naquele tempo, eu me sentia amado pelos meus pais, principalmente por minha mãe.

No entanto, uma tragédia tirou de mim essa felicidade no dia em que minha mãe teve a vida ceifada pela leucemia e eu tive a infelicidade de vê-la se definhar na sua cama até o seu coração para de bater. Tudo isso aconteceu ainda esse ano bem depois do meu décimo quinto aniversário.

Para piorar toda a situação, o meu pai teve o atrevimento de arrumar uma outra mulher, uma antiga amiga dele chamada Gislaine, para ser sua nova amante. Inevitavelmente, as brigas entre meu pai e eu só aumentaram, até chegar em um ponto em que ele disse na minha cara que a inclusão dela na nossa vida seria inevitável. Foi por causa dessa mesma discussão que eu decidi correr que nem um maluco rumo ao desconhecido até chegar a Praça da Liberdade.

– Olha só o que temos aqui.

Uma voz a poucos metros de mim perturbou a minha paz momentânea. Olhei na direção da dita voz e reconheci  Guilherme. Do lado dele, estavam dois colegas de escola meus, Marquinhos e Manuel. O meu mal humor voltou de dentro de mim com força total, afinal de contas eu também estava brigado com pelo menos a grande maioria do meu colegio, tudo porque ousaram mexer na memória de minha falecida mãe.

– Qual é o problema, Lipinho? – questionou Marquinhos. – Ainda bancando a menininha por causa da sua mãe?

– Não comece, Marcos. – disse eu, tentando conter a minha raiva.

– Já basta. – disse Guilherme sério. – Nós não viemos aqui para brigar, certo?

– Tem toda razão. – concordou Marquinhos, relaxando o seus ânimos.

Eu também comecei a me acalmar um pouco, apesar de eu ainda estar ressentido com a presença daqueles três.

– O que vocês querem de mim? – questionei.

– Olhe ao seu redor, Felipe. Você está completamente sozinho. Absolutamente ninguém vai vim aqui se compadecer de ti. Nem mesmo o seu pai tem paciência para ouvir a sua dor.

– E quem disse que eu preciso de alguém?! Apenas eu estava presente quando minha mãe deu o seu último suspiro naquela maldita cama de hospital. Mais ninguém!

– E ela te agradeceu por isso? – perguntou Guilherme.

Esse simples questionamento me deixou sem palavras, pois as recordações de minha mãe em seu leito de morte era algo doloroso para mim, pois o que Guilherme perguntou fazia sentido. O orgulho de minha mãe era a única coisa que a impediu de fazer qualquer agradecimento pela minha presença.

– Se quer que essa dor vá embora, é melhor que você venha conosco.

Eu podia até bancar o teimoso agressivo ali mesmo, se for preciso causar uma confusão tão grande que chamaria a atenção até da polícia. No entanto, eu já estava cansado de sentir tantas emoções em apenas um dia. Eu não me sentia com escolha naquele momento e decidi ir com eles.

***

Dentro da mansão de Guilherme, eu decidi escolher o sofá mais isolado da casa para sentar e refletir sobre o ocorrido nos últimos dias. No entanto, essa minha escolha não adiantou de absolutamente nada, pois foi só uma questão de tempo para que outros dos meus colegas percebessem a minha presença e viessem até mim. E eram muitos. Eles olharam para mim em um misto de compaixão e desconfiança.

– Você está bem? – questionou Vanessa, uma amiga minha de tantos anos.

– Dentro do possível. – eu fui honesto com ela. – Aliás, eu não entendo o porquê dessa reunião sem sentido.

– Estamos preocupados com você, Lipe. Pelo menos a grande maioria de nós está. Além disso, Guilherme disse que estava preparando uma grande festa e acabou tendo um certo boca a boca e praticamente todo mundo da nossa escola veio. As únicas coisas que faltam são os comes e bebes e a música.

– Eu não tenho ânimo nenhum para festas. Quando a música começar, eu irei embora.

O silêncio de Vanessa me tranquilizou um pouco. Ela decidiu respeitar o meu silêncio afinal de contas.

De repente, percebi a presença de Angélica, que apareceu andando na sala em direção a janela.

Eu fiquei tenso na mesma hora. Aquela gótica sempre me atormentava com os seus flertes, mesmo sabendo que não queria algo com ninguém, tanto por conta das exigências de minha mãe quanto pela minha insegurança. O que diabos aquela garota viu em mim? Vejo ela se mantendo parada em frente a janela mais próxima.

 

I did try to go alone

By these ways of life

I did try it on my own

Angélica começou a cantar, ao mesmo tempo em que virava lentamente para o lado oposto da janela, bem na minha direção.

 

I did think to be so bold

Until I realize

I did think to be so

Angélica caminhava lentamente na minha direção. Eu comecei a ficar nervoso, mas mesmo assim não conseguia sair do lugar.

 

I did feel the shadows come

Oh so dark and mighty

I did feel the shadows’ cold

Os meus colegas de escola começaram a olhar para a cena sem fazer nada. Percebi alguns deles tentando segurar o riso. Até mesmo Guilherme estava no meio.

 

I did need to be so strong

When I wished to die

I did need to have your love

Angélica estava bem próxima de mim, olhando bem em meus olhos, ao mesmo tempo em que me acariciava. Tentava me desvencilhar dela, mas era tarde demais. Aquele belo olhar me fez sentir algo que algum tempo considerava perdido.

 

I just want to stay with you until the last of my days

Feel certainty in my voice, you’re my sweetest choice

In the heat of your arms I’m complete

As you are

De repente, como se estivesse preparando um ataque surpresa, aquela linda gótica se aproximou ainda mais de mim. Nossos lábios se uniram em um beijo doce e intenso. Não demorou muito para que os nossos colegas de escola gritassem de tanta euforia, como se estivessem aguardando a melhor parte de um show. Eles estavam cantando “Se essa rua fosse minha” com bastante empolgação como se fosse um mantra. Porém, a zoação dos meus colegas já não tinha mais importância para mim, pois eu já estava sentindo uma grande paz com aquele beijo, como se eu estivesse precisando daquele ato de amor para aliviar a minha dor. Angélica e eu já estávamos rolando no chão da sala tamanha era a intensidade do nosso beijo. Naquele momento, nos tornamos um só.

***

Eu estava em um quarto escuro e sem mobília. Quando olhei em um espelho mais próximo, percebi que havia voltado a ser aquela criança de dez anos inocente e completamente dependente dos pais.

Percebo a presença de minha mãe bem próxima de mim. Ela possuía um semblante completamente sereno e ao mesmo tempo triste para mim. De repente, sem dizer absolutamente nada, ela me abraçou de forma intensa. Mesmo assim, eu podia sentir a real intenção daquele gesto de carinho e comecei a chorar junto com ela.

– Eu sinto muito, meu filho – disse ela, com uma voz embargada pelo choro. – Sinto muito por não poder vê-lo crescer por perto.

Depois de alguns bons minutos, minha mãe e eu nos separamos do nosso abraço e olhamos um para o outro com muita tristeza em um adeus silencioso e inevitável.

Porém, antes que eu pudesse dizer alguma coisa a ela, a porta que estava atras dela abriu de forma abrupta, revelando algo terrível e amedrontador para mim. Uma mão gigantesca e esquelética surge na escuridão para agarrar a minha progenitora sem muito esforço e a puxa de volta em direção as trevas. A última coisa que vejo antes de gritar era a porta se fechando com tranca.

***

Grito intensamente a puros pulmões e abro os meus olhos.

– O que houve, meu amor? – perguntou Angélica, que estava dormindo ao meu lado.

– Eu… Eu sonhei com a minha mãe. – respondi desesperado. – Ela estava sendo puxada para…

Eu logo me pus a chorar.

– Meu Deus do céu. Será que aquele foi realmente o destino dela? Ou será que foi apenas uma ilusão?

Senti Angélica beijando a bochecha do meu lado esquerdo.

– Sinceramente, eu não sei exatamente o que se passa do outro lado – disse ela. – Mesmo eu pesquisando inúmeras coisas, não consegui chegar a uma conclusão exata a respeito do assunto. Só me responde uma coisa, Felipe. A sua mãe era realmente uma santa como você mesmo dizia?

Certamente, ela estava esperando que eu fosse grosseiro com ela, mas eu estava conflitante a respeito do que eu acreditava e do que não queria acreditar. Respirei fundo para falar algo.

– Ela era uma boa mãe, Angélica. Ela não pensava duas vezes em me ajudar nas inúmeras lições de casa que eu tinha e até mesmo entrava no meu quarto para ter certeza que eu estava dormindo. Tinha só um porém. Ela era bastante ciumenta comigo em relação as outras garotas. Ela não queria me ver perto de nenhuma. Nem mesmo tolerava a minha fraqueza por corpos nus, se é que você me entende. Ela só aceitou a minha amizade com Vanessa porque tinha certeza de que ela era inofensiva. Além disso, ela era bastante orgulhosa a respeito de tudo. Talvez seja por causa disso dos meus pais sempre brigarem tanto quando completei os meus doze anos. Ela nem mesmo quis olhar na minha cara quando a visitava no hospital quando ficou doente… E o meu pai já nem estava ligando mais. Aquela altura, já devia estar tendo um caso com aquela pistoleira.

Eu já estava chorando novamente. Por mais que eu não quisesse enxergar ou falar sobre os defeitos de minha mãe, eu sentia uma necessidade muito grande de liberar toda aquela carga pesada que eu estava sentindo em minha boca.

– Me responde uma coisa, Angélica – disse novamente. – Você acha que minha mãe foi para o inferno depois de falar do meu sonho?

– É claro que não. –  respondeu ela. – Ela podia ter os defeitos dela, mas eu acho improvável que o destino dela seja o pior possível. Pode acreditar.

Aquela resposta me aliviou bastante. Beijo a sua boca levemente e de forma carinhosa. Quem diria que aquela que sempre me atazanou com a sua paixão exagerada fosse acabar me consolando.

***

No dia seguinte, meu pai foi ao meu encontro. Ele não teve tanta dificuldade em me encontrar. Afinal de contas, por ser bastante influente, ele conhecia quase todo mundo na região do centro de BH. A princípio, a tensão era clara entre nós dois devido a briga que tivemos na noite anterior. Felizmente, isso não durou muito tempo, pois nós dois já estávamos com os ânimos controlados.

– Você precisa entender que eu não posso passar minha vida inteira de luto, filho. – disse ele. – Eu ainda conservo a memória dela em meu ser apesar de nossas divergências.

No final das contas, terminamos aquela discussão com um abraço caloroso.

Algum tempo se passo e meu pai e Gislaine ainda estão juntos. O matrimônio entre os dois parece um fato consumado, mas isso já não me incomodava tanto. A essa altura, já estava torcendo para que nós dois conseguíssemos deixar o passado para trás. Quem sabe ao lado de nossas amadas, essa chance possa surgir mais cedo do que imaginávamos.

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