Bento
Lavo o rosto de forma demorada e olho para o espelho quebrado na minha frente. No entanto, por mais que eu tente ter uma cara mais apresentável, a minha dor me impede disso e as lágrimas rolam sem nenhuma cerimônia. Hoje eu sofri uma perda irreparável. Perda essa que nenhum pai devia passar. Débora, a minha filhinha de 16 anos, faleceu ontem. Não… Ela não morreu de doença alguma. Ela foi assassinada!
Tudo o que eu consegui saber foi que ela tinha um namorado e ele não era nenhum cavalheiro com a minha princesinha. Pra piorar, ele não passava de um marmanjo de 31 anos de idade. Só de imaginar o que ele fazia com ela quase me fez vomitar. Como se isso não bastasse, ele era muito possessivo com ela e deu um tiro em sua cabeça por pensar que ela estava o traindo. A morte dela foi violenta demais. Débora não merecia isso!
Eu me visto com a roupa mais apresentável para comparecer ao velório da minha filha. Até porque a minha ex-esposa, Josefina, além de tirar a guarda da minha filha, pegou todo o meu dinheiro e meu patrimônio, me deixando completamente miserável.
No momento, dei graças a Deus em meus pensamentos por pelo menos ter dinheiro de sobra pra pagar a ida e volta do Uber. Que Deus me ajude a ver o corpo da minha filha pelo menos.
***
Chegando ao local do velório, eu fiquei estarrecido com o que estava diante de meus olhos. Praticamente todo o cemitério estava cercado por guardas pessoais. Além disso, eu podia ver alguns dos presentes usarem roupas caríssimas. Foi um esforço quase que titânico para conter a minha raiva. Josefina estava usando a funeral da nossa filha como um evento da elite e estava investindo pesado para me impedir de ver a minha filha, mesmo não tendo dinheiro pra pagar.
Fui em direção a entrada. Eu precisava entrar no velório. Era meu direito como pai.
– Alto lá! – exclamou um dos dois guardas que guardava a entrada principal do cemitério. – Identifique-se!
– Meu nome é Bento Torres. – respondi. – Eu sou o pai de Débora Torres.
– Lamento, senhor. – disse o segundo guarda. – Recebemos ordens restritas de não permitir que o senhor entre no velório. É melhor você ir embora.
Novamente, lágrimas invadiram o meu rosto.
– Pelo amor de Deus… Ela era minha filha. Pra quê fazer isso?
– Nós só cumprimos ordens, Senhor. Seria prudente você ir embora antes que sejamos obrigados a fazer uso da força.
– Mas…
– Você não ouviu os guardas, Bento? Vaza daqui o quanto antes.
Percebo a presença de Josefina no meio dos guardas. Nunca foi tão difícil perder o controle como naquele momento.
– Como pôde fazer uma coisa dessas, Josefina? O que você pretende ganhar transformando a morte da nossa filha em um degrau social seu?
– O culpado foi você, Bento! – exclamou ela raivosa. – Você tinha a capacidade de transformar a nossa vidinha medíocre em algo bem mais grandioso assim como eu estava fazendo para a nossa filha!
– Como? Como?! Permitindo que ela fizesse as piores escolhas possíveis para a vida dela até levá-la a morte?!
– O maior errado nessa história foi aquele canalha maldito. – Josefina estava cada vez mais rancorosa. – Porém a coisa que mais me consola é que ele teve o castigo merecido.
Foi nesse momento que eu percebi um detalhe bastante perturbador. Depois de assassinar a minha filha a sangue frio, aquele marmanjo não foi visto em parte alguma, nem mesmo para prestar interrogatório.
– O que vocês fizeram com ele? – questionei já tenso.
– Isso não é da sua conta, Bento.
– Pelo amor de Deus, guardas! Ela está praticamente confessando um crime. Ainda assim, não vão fazer nada?
– É inútil, Bento. Os guardas daqui sabem como cumprir ordens seja de quem for. Além disso, eles foram muito bem pagos para obedecerem a qualquer ordem minha.
– Josefina, acorda para a realidade. – Eu já estava desesperado. – Você está se apegando a um trono de pó que vai se esvair em tão pouco tempo, ainda mais com a realidade de nosso país.
Sem pensar duas vezes, eu peguei a Bíblia que estava em minha mochila e mostrei a Josefina e aos guardas.
– Foi por causa do que está escrito aqui que eu nunca me apeguei a nenhum bem material. Eu sabia que se eu me deixasse levar pela riqueza terrena, seria condenado e correria o risco de levar a minha família junto. Eu fiz o possível para poupar você e a Débora de um futuro vazio e sem felicidade. No entanto, veja só você, Josefina. Você decidiu jogar o nosso casamento, a nossa família fora na esperança de almejar uma vida falsa e infeliz, investindo pesado para entrar na elite, mesmo sem dinheiro suficiente pra pagar a conta. E o pior de tudo isso foi que a nossa filha pagou um preço alto demais pela sua negligência e egoísmo.
– Já chega!!! – bradou Josefina. – Escute bem no que eu vou te dizer, Bento. Ou você dá meia volta e vai embora ou mando os guardas prenderem você em uma cela suja onde você merece estar. O que me diz. Vai tentar a sorte?
Particularmente, eu estava mais que decidido a tocar o foda-se e entrar naquele velório nem que fosse na marra. No entanto, alguma outra coisa despertou em mim. Uma leve sensação que me dizia para desistir daquela briga sem sentido.
“Não vale a pena”. Dizia essa sensação, que logo deduzi ser o próprio Deus.
Eu virei as costas para aquele grupo o mais rápido que pude. Com um vazio na alma, eu fui embora daquele cemitério sem nem ao menos me despedir da minha filha.
***
Novamente estava na minha casa. Eu estava chorando e rezando pela alma da minha filha.
– Deus, eu te suplico! – implorei. – Proteja a alma da minha filha. Dê a ela o descanso que ela merece. Amém!
Com certa dificuldade, eu consegui dormir. Pra ser mais exato, foi apenas uma hora da madrugada, meus olhos enfim fecharam e cai no sono.
***
Abro os meus olhos e percebo que estou preso em uma escuridão densa e total. Eu nem sequer tive a capacidade de ver as minhas próprias mãos. Eu estava a beira de ter um ataque de pânico. No entanto, a sensação de estar perdido no escuro não durou muito tempo, pois logo percebi uma pequena luz alaranjada muito distante de mim.
A caminhada até aquela luz foi longa, mas por incrível que parecia, eu não estava me sentindo nem um pouco cansado. Muito pelo contrário. A cada passo que eu dava, mais me sentia motivado a seguir em frente.
Porém, algo mais me chamou a atenção. Cada vez que eu me aproximava da luz laranja, os gritos de desespero e os choros de dor ficavam ainda mais altos. Por mais que eu quisesse para de andar, algo em mim insistia em me levar até o final daquela caminhada.
Quando eu terminei de andar, quando eu finalmente cheguei ao meu destino, eu tive uma confirmação extremamente terrificante. Um enorme calafrio invadiu todo o meu corpo em um piscar de olhos. Aquela maldita luz alaranjada estava me levando diretamente para o inferno.
Simplesmente, o horror de testemunhar as inúmeras cenas de tortura e os diversos demônios que habitavam o reino de Satanás era indescritível.
-Por que, meu Deus?! – exclamei desesperadamente. – Por que eu fui levado para este lugar maldito?!
Quando eu ia me entregar a tristeza, aquela mesmo sensação que senti no velório da minha filha invade novamente o meu ser e estava me pedindo para seguir em frente.
“Continue andando” dizia. “Você precisa saber a verdade”
Mesmo com medo, eu decidi seguir a voz, fazendo o que fosse possível para ignorar as almas atormentadas que habitavam por lá. No entanto, o choro completamente desesperado e os gritos dolorosos estavam quase me deixando maluco.
De repente, percebo alguém familiar em meio aquelas almas atormentadas. Era o assassino da minha filha. Ele estava acorrentado e com a parte de baixo do corpo mergulhada em lava pura. Ele urrava de dor. As chamas também consumiam o seu corpo. Apesar de tudo o que ele fez, eu não podia deixar de sentir pena daquele homem, pois eu sabia muito bem que aquele tipo de sofrimento não vai acabar nunca. Sigo em frente na direção que a voz misteriosa ordenou. Não demorou muito para que eu chegasse ao local indicado.
Bem a minha frente, vejo um monte de demônios masculinos andando em um único círculo, certamente impedindo a saía de alguém.
-Olha que vem ali. – um dos demônios percebe a minha presença, este que possui a forma de um bode humanoide.
– Ora, ora, ora. – outro demônio, em forma de sapo humanoide com chifres também notou a minha presença. – Se não é Bento, o pai de Débora.
Eu fiquei pálido no mesmo instante. De alguma forma, todos aqueles demônios sabiam o meu nome e o da minha filha. De repente, todos os demônios restantes também me fitavam. O que eu devia fazer? Se aqueles demônios decidissem me atacar naquele momento, eu estaria perdido.
-Não há com o que se preocupar, Bento. – disse o demônio bode. – A sua fé o impede de ficar no nosso domínio… Por agora.
– O mesmo não pode ser dito por sua filha e muito menos para sua ex-mulher. – disse um demônio coruja com chifres.
– O que querem dizer com isso? – questionei, já temeroso.
Foi nesse momento que eu percebi mais um detalhe apavorante. Todos aqueles demônios, sem exceção, estavam todos pelados e com seus membros íntimos completamente crescidos.
-Onde está a minha filha? – questionei.
Sem nem ao menos dizerem uma palavra, alguns dos demônios abriram espaço naquele círculo nefasto e logo percebi, com o maior desgosto do mundo, o real motivo daquilo tudo. Lágrimas rolando em meu rosto de forma demasiada. Eles estavam cercando a milha filha, que por sua vez estava completamente nua e suja. Eu fiquei completamente paralisado. Por que diabos a minha filha estava naquele lugar imundo?
-Deve… Deve haver algum engano, meu Deus. – eu já estava chorando com aquela revelação. – A minha filha não merece estar aí… Ela é uma menina boa… Educada e sensível…
Todos os demônios riram em um tom de deboche.
-Pelo visto você não deu a atenção devida a sua filha, não é mesmo? – questionou o demônio coruja.
– Do que você está falando? – questionei ainda tristonho.
– Debora. Por que não fala para o seu pai o motivo de você estar ardendo no fogo do inferno?
A minha filha se aproximou pouco de mim.
– Não chore mais por mim, meu pai. – disse ela melancólica. – É inútil agora. Eu fui julgada pela palavra de Deus. Palavra essa que eu fiz pouco caso durante os momentos em que estive com você.
– Não é verdade… Não é verdade… – eu ainda chorava desesperadamente.
– Mais do que isso. Eu não apenas dei crédito ao seu Deus, pai. Eu debochava Dele! Eu inventava qualquer desculpa mesmo que fosse pequena para amaldiçoá-lo!
– Cala essa boca! – bradei desesperado.
– Graças a minha mãe, eu me tornei uma menina má! – eu não sabia ao certo se ela estava falando por desespero ou pura maldade. – Eu comecei a tratar as outras pessoas como ralé, usava o meu corpo para seduzir rapazes mais velhos e brinquei com os sentimentos daqueles que me amavam, principalmente o meu último namorado! Namorado esse que me matou!
Chorava desesperadamente ao ouvir tamanha revelação, mas ao mesmo tempo a minha mente começou a recordar dos tempos difíceis que eu tive com a Débora durante os tempos da minha separação. Do quanto eu tentei ensiná-la a ser mais humilde e a ouvir mais a palavra de Deus. E como sempre, ela fazia pouco caso. Para piorar, por influência de Josefina, ela ficava cada vez mais arrogante conforme a adolescência se aproximava, até chegar ao ponto de não a reconhecer mais. E isso foi decisivo para que eu perdesse o amor da minha filha de uma vez por todas.
-Pelo visto não há mais nada a ser dito aqui. – disse o demônio-bode. – Agora se nos der licença, senhor, temos uma festinha a fazer.
Aquela fala me deixou completamente transtornado. Não era preciso ser um gênio para perceber o que eles iam fazer a minha filha. Juntei o que restava das minhas energias para tentar salvar a minha garota. No entanto, um dos demônios já era forte o bastante para me pegar pelo pescoço e me levantar com muitíssima facilidade.
-Não interfira! – exclamou o demônio em forma de sapo. – Volte para céu que é o seu lugar!
Sem ao menos se esforçar, o demônio-sapo me arremessou para longe, em direção ao céu infernal. Tudo o que podia fazer era ver de longe todos aqueles demônios malditos colocarem as mãos em Débora e a colocarem no chão, sem se importarem com seus gritos de desespero.
***
Acordei gritando a plenos pulmões. Respirava ofegante ao mesmo tempo em que começava a ficar aliviado pelo fato de tudo o que eu testemunhei não passar de um simples pesadelo. No entanto, para o meu horror, percebi um cheiro forte de enxofre no ar. Fora isso, olhei para o meu relógio apenas para descobrir que já passava das três horas da madrugada. Sem pensar duas vezes, eu me ajoelhei e comecei a rezar com lágrimas nos olhos.
***
Dentro do ônibus, eu olho para o céu nublado. As gotas de chuvisco batiam de leve na janela. Os meus dias depois de ter tido aquele pesadelo não foram o dos melhores. Entrei em uma depressão profunda por perceber que aquele sonho tinha sido real e que a minha filha está sofrendo e muito por causa de suas escolhas. Agora, a depressão está começando a amenizar pouco a pouco. Por sorte, eu ainda tinha amigos fiéis que me ajudaram nesses momentos de crise. Inclusive, foram eles que me sugeriram que eu viajasse para um retiro no interior para ocupar a minha cabeça. Eu realmente estava precisando disso depois de tudo o que eu passei. Eu até me sinto culpado em saber do destino final da minha ex esposa. Ela cometeu suicídio depois de ter um pesadelo apavorante. No fundo, eu tinha certa noção do tipo de pesadelo que ela teve. Foi algo tão traumatizante que a levou a loucura. Nesse momento, eu me sinto mal em admitir para mim mesmo que estava satisfeito com a morte de Josefina. Ela finalmente teria um castigo merecido depois de tudo o que fez a mim e a minha filha. Que Deus tenha misericórdia de mim.
Parabéns Lincoln