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A celebração

Eu tinha os meus olhos fixados na paisagem que se formava na estrada durante a noite. Era a única coisa que eu podia fazer para amenizar, nem que seja por alguns segundos, a imensa tristeza dentro de mim. Meus pais estavam silenciosos no banco da frente.

     Aquela era uma noite especial para eles. Era meu aniversário de quinze anos. Para isso, eles e os outros pais decidiram preparar uma celebração especial, na qual outros jovens que eu mal conhecia fariam essa mesma idade. Porém, eu não queria comemorar essa data da forma que meus pais queriam, pois sabia muito bem o que aguardava a mim e aos outros jovens naquela festa. No entanto, eu não podia fazer mais nada para impedi-los, pois eles estavam irredutíveis.

   De repente, sinto o carro perder a velocidade aos poucos e a parar novamente no fim do caminho. Meu coração começou a bater com mais intensidade. Havíamos chegado ao local indicado. Eu sentia isso.

    – Querido, tem certeza de que chegamos ao lugar certo? – questionou minha mãe.

   – Claro que sim. – afirmou meu pai. – Segui todas as coordenadas fielmente. Não tinha como errar.

     – Pois bem.

     Meus pais e eu saímos do carro e contemplamos a mansão que estava diante de nós. Era um edifício até que moderno, mas não tirava o fato dele possuir uma atmosfera bastante sombria para mim.

     – Vamos, Túlio. – disse meu pai.

     Completamente passivo, eu acompanhei os meus pais para a entrada da mansão. Lá, fomos abordados por um segurança mascarado.

     – A senha, por favor. – disse ele em um tom severo.

     – Pappillon. – disse meu pai.

     – Senha correta, doutor. Tenham boas festividades.

     – Muita obrigada. – agradeceu minha mãe.

    Ao adentrarmos a sala principal da mansão, meus pais foram recebidos de forma calorosa por seus amigos. Eles eram ricos, assim como nós, mas isso não vinha ao caso agora, pois não queria saber do quanto dinheiro eles possuem ou muito menos queria saber de como eles enriqueceram tão rápido. Eu só queria ir para casa e fazer de conta que eu estava apenas em um pesadelo.

     – Os outros jovens estão no outro salão, Túlio. – disse a minha mãe. – Quem sabe se unindo a eles tira você dessa fossa.

     Eu dei um longo suspiro.

     – Tá bem, mãe. – concordei.

   Comecei a caminhar para longe daqueles adultos malditos e fui em direção a tal salão. Porém, antes de entrar para lá, virei em direção onde meus pais estavam. A sala inteira tinha desenhos de borboletas em tudo quanto é lugar, o que fazia jus a senha que eles escolheram. Sem perder mais tempo, eu fui até o salão seguinte.

     A princípio, eu achava que estando ao lado de outros jovens, aquela sensação ruim que havia em mim cessaria nem que seja por um instante. Ledo engano, pois ao adentrar aquele quarto, a atmosfera pesada aumentou ainda mais. Diante de mim havia um grupo muito grande de adolescentes. Vinte dois para ser mais exato, contando comigo. Éramos onze garotos de um lado e onze garotas de outros. Todos eles estavam prestes a fazer aniversário de 15 anos nessa mesma noite.

     – Túlio? – uma voz familiar chamou o meu nome.

     Ao virar para o meu lado direito, percebo a presença de Clarice. Ela é minha vizinha desde o tempo em que eu e minha família nos mudamos para o bairro mais nobre de Belo Horizonte desde que ficamos ricos a dois anos atrás. No instante em que nossos olhares se cruzaram, nós nos abraçamos intensamente, tentando encontrar um consolo qualquer, apesar do que estaria prestes a acontecer.

     – Até você teve que vir para essa celebração? – questionou Clarice, com lágrimas nos olhos.

     – Infelizmente. – respondi.

   Clarice e eu sentamos em um lugar mais distante dos outros jovens. Queríamos um tempo a sós um com o outro para tentar acalmarmos nossos corações.

     Sentados em um sofá distante, vimos os outros adolescente reagindo da forma de cada um na espera da celebração. Eu podia ver e sentir em todos eles o medo e a tristeza claramente estampados em seus rostos e movimentos. Mesmo não sabendo ao certo o que ia acontecer de fato nessa tal celebração, podíamos ter uma noção básica de que ia acontecer algo bastante ruim.

     – Ver uma cena dessas está me dando um aperto. – disse Clarice ao meu lado.

     – Em mim também – desabafei.

   – Túlio, tem uma coisa que preciso contar a você. É uma coisa muito importante. Eu sei que você até suspeita disso, mas eu nunca admiti, nem mesmo para mim mesma.

   Cruzei o meu olhar com o dela para ouvir a verdade que eu tanto aguardava.

     – Desde o dia em que nos tornamos amigos, sentimentos novos surgiram dentro de mim. De repente, eu senti uma vontade muito forte de ficar mais próxima de você. De tocar você, de beijar e…

    Me aproximei ainda mais dela, ao ponto de nossos rostos ficarem colados um no outro.

     – Não precisa dizer mais nada, minha querida, pois eu sinto a mesma coisa contigo. Ou até mais.

      Ao ouvir isso de mim, Clarice me abraça mais uma vez e se entrega ao choro.

      – Eu estou com medo… – chorou ela. – Estou com tanto medo e não sei o porquê.

     Eu retribuo a abraço dela em uma tentativa de consolá-la, ao mesmo tempo que vejo os outros jovens fazendo gestos semelhantes com seus pares ou amigos.

    De repente, a porta se abriu, revelando um homem mascarado misterioso vestindo uma capa preta por cima de um terno da mesma cor.

    – Pois bem, meus jovens – disse ele. – Já podem se preparar. A celebração está prestes a começar.

     Apesar do pânico mais que evidente, apesar de todo o medo do que ia acontecer em breve, todos nós sabíamos que nós não temos outra alternativa a não ser acatarmos as ordens daquele mascarado. Então todos nós começamos a tirar as nossas roupas até ficarmos totalmente nus. Logo depois, colocamos capas pretas em cima de nossos corpos. Eu olho para Clarice e percebo que, assim como eu, ela estava pronta para aceitar o seu destino, seja ele qual for.

     Com uma vela acesa em mãos, eu e os outros adolescentes andávamos na floresta de eucalipto rumo ao local da celebração. Guiados pelo misterioso mascarado, a caminhada seguia em linha reta mas ao mesmo tempo tortuosa para os nossos pés descalços. A escuridão tomava conta da floresta mesmo com o céu estrelado e com a lua presente no céu.

     Completamente apático, eu podia sentir o vento como se fosse um sussurro demoníaco para os meus ouvidos. De mão dada com Clarice, a minha única motivação para estar vivo, eu continuo andando naquela estrada escura.

    De repente, percebo um leve clarão de cor alaranjada se formando a nossa frente.

     Conforme andávamos, a luz aumentava cada vez mais, até que a imagem enfim tomasse forma.

     Diante de nós, estava o local da celebração e era muito pior do que nós imaginávamos.

     Bem a frente do círculo formado no centro da clareira, estava uma estátua de madeira que parecia representar uma coruja.

     No dito círculo, havia uma formação de palha que parecia formar uma espécie de cama grande. A mesma formação podia ser vista na extremidade de cada ponto do círculo.

     Uma lágrima de puro pavor desceu em minha face ao perceber o que viria logo a seguir.Eu podia sentir a mão de Clarice apertando ainda mais na minha.

     De repente, eu ouvi uma garota em nosso grupo gritar o mais alto que podia e a chorar desesperadamente, mas já era tarde demais, pois um grupo ainda maior de pessoas estava cercando a nossa única saída.

– É chegada a hora, jovens. – anunciou o mascarado.–Cada casal deitará em cada cama formada para o sacrifício.

     Machucados com a indiferença dos nossos pais, não nós restou outra alternativa a não ser seguir com aquela loucura. Clarice e eu fomos guiados pelo mascarado para a cama de palha no centro do círculo. Já deitados no ninho, eu e Clarice nos contemplamos por alguns poucos minutos e, sabendo que seríamos obrigados a fazê-lo uma hora ou outra, começamos a nós beijar lentamente, como se aquela demonstração de amor ou paixão fosse nós salvar daquele pesadelo.

     – Muito bem, garotos – disse o mascarado – Era isso mesmo que eu queria que vocês fizessem. – logo em seguida, ele anunciou para os outras crianças. – O primeiro casal se submeteu ao destino e a paixão. Vocês também podem fazer o mesmo. Quem sabe, com isso, o nosso senhor e mestre poupe a paixão de vocês depois de passarem a morar nas trevas. E falando em trevas, já está mais do que na hora de vocês se juntarem aos outros naquele lugar.

     Naquela altura do campeonato, já não nós importávamos mais com o que aquele mascarado dizia, afinal de contas, estávamos consumidos por aquele desejo carnal, como se alguma coisa ou alguém nos controlava nas sombras, nos induzindo a sermos uma só carne naquele ritual profano.

     Clarice e eu continuávamos a nós beijar, não nós importando se o ritual já havia começado ou não. Apenas sentimos o calor do fogo pouco tempo depois.

***

     Como o mascarado havia nos dito, nossas almas foram transportadas para um mundo de trevas e desde então sofremos muito com isso, pois o escuro da morte é muito mais denso do que nós imaginávamos, chegando ao ponto de não conseguirmos enxergar absolutamente nada como se fosse uma cegueira. A única coisa que temos nessa escuridão é um ao outro. E especialmente ao lado de Clarice, a minha sanidade se mantém intacta, assim como o nosso amor.

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