Presa favorita
Mariana
Contemplo calmamente através da minha janela a cidade de Diamantina. O céu noturno e sem estrelas estava maravilhoso. As luzes da cidade combinavam bastante com o clima noturno de verão.
A ansiedade já estava tomando conta de mim enquanto esperava a chegada de Helena, o meu único consolo de todas as noites além da minha melhor amiga Juliana. Isso porque, de uns tempos para cá, a briga entre os meus pais só vinha aumentando, chegando ao ponto dos dois nem se importarem com a minha presença. Inclusive, cheguei a ver com os meus próprios olhos o meu pai quase desferindo um soco em minha mãe. Ele só não continuou por temor a retaliações. O mais revoltante disso tudo é que ninguém tinha a capacidade de fazer qualquer coisa para ajudar a minha mãe e eu, deixando nós duas a própria sorte e ignorando uma tempestade que estava diante deles.
De repente, enquanto eu estava de costa pela janela, um forte ventania tomou conta do meu quarto, mesmo não tendo ameaça alguma de tempestade. Me virei e percebi a presença de Helena. Como sempre, ela estava vestida de forma elegante. Provavelmente preparada para a caçada da noite.
– Minha filha – disse ela com sua voz doce e acolhedora – Você está bem essa noite?
– Mãe… – essa palavra saiu por acidente em minha boca enquanto eu ia em direção a ela, a abraçando intensamente e chorando em seu ombro.
Helena retribuiu esse abraço docemente. Apesar do toque frio como a morte, aquele gesto se tornou importante com o passar dos anos.
– Eu preciso de sangue. – murmurou ela em meu ouvido. – Agora.
Eu sabia o que viria logo a seguir e já não me importava mais.
Deixei a minha jugular exposta para Helena, que por sua vez não perdeu tempo e penetrou os seus dentes em meu pescoço.
Aquilo me deu uma sensação de paz enorme, como se todos os meus problemas sumissem da noite para o dia com um simples estalar de dedos.
No início, quando Helena apareceu na minha janela pela primeira vez quando eu ainda tinha dez anos, eu tinha muito medo dela. Porém, eu não consegui gritar por socorro e muito menos correr para longe dela, graças ao poder imenso que a vampira exerceu sobre mim. A única coisa que eu conseguia fazer era deixar as minhas lágrimas rolarem de tanto pavor. Desde aquele dia, Helena sempre me visitava enquanto podia para beber o meu sangue. E em todos esses momentos, eu sempre chorava e soluçava esperando para que ela parasse.
Isso foi até alcançar a minha adolescência, quando meus pais começaram a brigar de forma cada vez mais intensa. Para ser mais exata, foi nos meus catorze anos que deixei de ter medo de Helena e de suas visitas. Agora, com quinze, eu sempre recebo a visita dela com certo alívio. Já não me importava mais em ser a presa favorita dela.
***
-Deixa eu ver se eu entendi direito – disse Helena, curiosa. – Seu pai chegou ao ponto de quase socar a sua mãe?
Exatamente. – respondi, ainda melancólica. – Eu tento avisá-la sempre que eu posso, imploro um monte de vezes para que ela o denuncie ou que ao menos peça o divórcio, mas ela insiste em manter o casamento e ainda desconta em mim o que sempre ocorre com ela.
Helena ouvia tudo com uma certa frieza, mas eu já não me importava mais com esse detalhe. Eu precisava desabafar com alguém sobre os meus atuais problemas antes que eu ficasse louca.
– Eu já estou me sentindo em um beco sem saída. – estava lacrimejante em fazer tal declaração. – Me diga com toda a sinceridade. Você acha que tudo vai melhorar?
Passou-se apenas alguns segundos para ela me dar alguma resposta.
– Eu preciso ser sincera com você, minha menina – disse ela.- durante os meus duzentos anos de existência, já vivenciei todo e qualquer tipo de barbaridade existente nesse planeta e posso dizer com um grande pesar que a situação com os seus pais só tende a piorar.
Aquela declaração foi como um bola de demolição mirada em meu coração. Podia sentir os meus olhos lacrimejando mais uma vez.
– No entanto, eu quero que você saiba – voltou a dizer ela. – Se algo bastante grave acontecer com você, sabe onde me encontrar, certo?
Como um vento forte, vejo Helena desaparecer diante de mim em um piscar de olhos.
Eu me ponho a chorar por sua resposta, como se eu fosse capaz de prever uma tragédia inevitável.
***
5 dias depois
– Anime-se, Mariana. – disse Juliana ainda alegre. – Já vai fazer 5 dias que os seus pais não brigam. Sei que não chega a ser grande coisa, mas também já é motivo para comemorar.
Eu desejava muito acreditar nas palavras de Juliana, no entanto, a força das palavras de Helena ainda me assombravam com uma estrondosa persistência que chegava até a sugar o que restava da minha autoestima.
No entanto, bastou apenas um mau pressentimento para desintegrar de uma vez por todas com o meu otimismo, pois no momento em que pisei na minha rua, percebi uma gigantesca aglomeração se formando bem perto de minha casa, com direito a presença do carro da polícia e do Ambulância.
Sem pensar duas vezes, fui correndo em direção a minha casa, tamanho era o desespero que se formava em meu ser.
– Espere, Mariana!! – bradou Juliana em vão.
No momento em que me preparava para enfrentar a muralha formada por pessoas, Dona Benta chegou bem próximo de mim para evitar a minha passagem.
– Por favor, minha criança, não vá para lá. – disse ela aos prantos. – Aconteceu uma tragédia horrível.
Eu fiquei congelada de horror, imaginando o possível cenário da tragédia.
– O que aconteceu? – perguntou Juliana.
– Uma brutalidade, minhas crianças… O pai de Mariana matou a mãe dela… A atacou com um pedaço de pau bem grande bem no centro da cabeça dela e depois tirou a própria vida com a ponta desse mesmo pedaço de madeira. Ele sangrou até morrer… A casa tá toda encharcada de sangue… Um cenário dantesco…
Dona Benta pôs-se a prantear novamente. Enquanto a mim surgiu um gigantesco vazio formado pelo luto recente. Da forma mais abrupta possível, eu perdi o que restava da minha família por conta de um sentimento extremamente banal. Eu já não tinha mais ninguém nesse mundo. Ninguém mais era capaz de prever a magnitude de minha dor, exceto uma pessoa… Se é o que eu posso chamar dessa forma.
Totalmente apática, continuo a minha caminhada para único lugar que me resta. Sinto a mão de Juliana pegando na minha.
– Espere, Mariana – disse a minha amiga desesperada. – Aonde você vai?
– Está tudo bem, Ju. – tentei tranquiliza-la – Preciso desesperadamente fazer uma caminhada para assimilar as coisas.
– Eu vou com você, amiga. – eu podia senti-la se entregando ao desespero assim como eu.
Eu já não estava me importando com mais nada, nem mesmo com a presença de Juliana. Continuei caminhando rumo ao meu destino final.
***
-Esse lugar está me dando calafrios. – disse Juliana, que continuava caminhando ao meu lado.
O casarão a nossa frente era envolto em mistérios. Ninguém sabe aos certo o que aconteceu com a última família que habitava em seu solo agora desgastado e apodrecido. A única coisa que foi confirmado é que o abandono ocorreu séculos atrás. No entanto, eu já sabia melhor do que ninguém que aquele casarão pertencia a família de Helena antes de receber a maldição da noite eterna.
Progredi na minha caminhada rumo aquele casarão aparentemente abandonado. Minha amiga Juliana também, mesmo com o medo mais que evidente. Conforme o sol se escondia no horizonte, formando um crepúsculo sombrio, minha ansiedade crescia cada vez mais.
Por incrível que parecia, o portão do casarão estava escancarado assim como a porta da entrada principal, como se a anfitriã estivesse esperando a nossa presença.
No lado de dentro, eu já não tive pressa nenhuma em procurar por Helena. Até porque, a luz do sol ainda estava no horizonte apesar de fraca. Fiquei deslumbrada com a imensidão do lado interno do casarão e sei que Juliana também ficou.
Não demorou muito para encontrar o quarto onde Helena dormia. Juliana e eu a vimos em seu descanso vampírico, como se fosse um corpo morto exposto em um velório. Bastou nos aproximarmos um pouco mais dela que a vampira despertou de seu sono de morte. Helena foi rápida o suficiente para colocar Juliana sob o seu controle assim como fez comigo quando eu ainda era uma criança. Logo em seguida, a vampira se levantou rapidamente e fincou as suas presas na jugular da minha amiga. Eu podia ver uma certa resistência em Juliana em não se entregar ao ritual. Porém, assim como eu, era impossível resistir. Eu fiquei paralisada, observando aquela cena, completamente indiferente.
Quando Helena terminou, eu já sabia o que dizer a ela.
– Pode nos matar se quiser. – disse eu.
Ao ouvir isso, Helena aproximou-se de mim e olhou em meus olhos.
– Aconteceu o que eu disse a você? – questionou a imortal.
Nem era preciso dizer mais nenhuma palavra, pois estava mais do que evidente para nós duas sobre o pior, assim como nossas reais intenções.
Sem pensar duas vezes, Helena finca os seus dentes em mim como sempre fazia e esperei calmamente o alívio chegar até mim, varrendo de uma vez por todas o meu maior trauma.
Passou alguns poucos minutos e eu já estava debilitada por causa do ritual. De repente, Helena parou de se alimentar de mim e afastou suas presas.
– Eu farei muito mais do que simplesmente me alimentar de vocês. – disse ela.
Mesmo estando fraca, eu podia ver Helena usando as suas unhas para cortar levemente a pele de seu pescoço nos dois lados, deixando o sangue vazar nas feridas. Depois, ela aproxima Juliana e eu dessas mesmas feridas, nos obrigando a beber aquele sangue negro e morto. Esse processo durou alguns poucos minutos antes da vampira se desvencilhar de nós duas.
De repente, Juliana e eu sentimos um sono incontrolável e severo. No entanto, eu já não me incomodava. Qualquer coisa era melhor do que viver nesse mundo cruel.
***
1 mês depois
A princípio, tivemos uma grande dificuldade em nós adaptarmos com a nossa nova condição. Tanto Juliana quanto eu choramos depois da descoberta. Nenhuma de nós ansiou pela imortalidade. Porém, Helena foi paciente, o bastante para nós confortar e nos ajudar a adaptarmos com a nossa nova rotina, como uma mãe ensinando os seus filhos.
Apesar de tudo, eu finalmente podia sentir como é ter tudo sobre o seu controle, principalmente nas horas mais escuras. Atualmente, morando em BH com a minha nova mãe e com minha irmã de eternidade, eu iria me certificar de usar o dom dado por mim e por Juliana para dar uma lição a todos aqueles que se sentem no direito de machucar os mais indefesos ao seu bel-prazer, assim como dar aqueles que sofrem, ao menos, um momento de calma e de prazer.
Parabéns Lincoln